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sábado, 5 de agosto de 2017

"Elogio ao Socialismo

Elogiei o liberalismo - o liberalismo consequente e sério, que enfatiza a responsabilidade do indivíduo para torná-lo o mais livre possível, e que por isso mesmo não se confunde com a ideologia da desigualdade. Ele aceita a desigualdade, sim, mas nos resultados: no ponto de partida, ela tem de ser diminuída. Uma igualdade de chances justifica a desigualdade no final, se uma pessoa for mais trabalhadora e ativa do que outra. Evidentemente, essa proposta política é difícil de se realizar, quase utópica, mas é de alto nível.

Na outra ponta do espectro político democrático, temos o socialismo. Assim como o liberalismo realmente existente justificou a opressão colonial, o socialismo real, o comunismo, perpetrou crimes imperdoáveis. Mas isso não impede que um e outro tenham um núcleo nobre, inspirador.

O socialismo é a proposta mais elogiável de construção de laços sociais entre homens e mulheres. O liberalismo receia que laços sejam grilhões: só devo entrar nas relações que eu livremente escolher. Já o socialismo entende que, por nossa formação, antes mesmo de nossas escolhas conscientes, já pertencemos a grupos. Devemos ser autônomos, pensar e optar por conta própria, mas a determinação social é mais forte do que acreditam os liberais. E por outro lado, essa determinação não é necessariamente um grilhão. Ela pode ser o veículo de nossa liberdade.

Einstein

Mais que isso: como afirmou Albert Einstein, o socialismo visa superar a fase predatória do desenvolvimento humano. O mercado é predatório. O liberalismo está estreitamente associado ao capitalismo, que aposta, como incentivo à ação econômica, no instinto animal do ganho, do lucro. Assim, se o liberalismo enquanto filosofia política tem um núcleo moral, seu correspondente econômico, o capitalismo, é em sua essência, amoral.

No capitalismo, a moral vem sempre de fora, como um contrapeso externo que o contém e limita. Direitos trabalhistas, defesa do consumidor, preocupação com o meio ambiente, não nasceram do capitalismo. Foram-lhe ou ainda lhe são impostos, às vezes (veja-se hoje a questão da ecologia) com muita dificuldade. Ele pode aceitá-los, mas não estão em seu cerne. Ora, no caso do socialismo, a aspiração moral é mais central do que no capitalismo. Para tomarmos esses três grandes temas: o socialismo nasce do mundo do trabalho; ele não deve ser predatório, e , portanto, poupará a natureza; também não teria maiores problemas com a defesa do consumidor.

O socialismo discorda da opção liberal de apostar no próprio interesse, entendido, sobretudo, como econômico. O homo oeconomicus representa apenas uma parte da experiência humana. Se os laços sociais podem ser grilhões, podem também ser nosso meio de libertação e de construção de uma sociedade justa. A justiça é um grande tema socialista, não apenas no ponto de partida, mas igualmente em todo o trajeto.

No fundo, a melhor crítica que o socialismo poderia fazer aos liberais seria, ironicamente, retomar um dos maiores filosófos liberais do século XX, Sir Isaiah Berlin, que desconfiava profundamente de utopias. Ora, o liberalismo não é, também, uma utopia? Onde se encontram pessoas racionais como ele as quer? E que dizer da igualdade de oportunidades no ponto de partida? Ao longo de nossas vidas, teremos sempre dificuldades impostas socialmente.

Suponhamos um liberalismo consequente, que garanta mesmo aos miseráveis um ponto de partida decente, de modo que possam neutralizar as desvantagens que a pobreza lhes trouxe. Mas dá para apagar a desigualdade num só momento, o inicial, se ela continua pesando sobre o resto da vida? A sociedade está mais presente do que o liberal gostaria. E está presente como peso, mas também como chance. Laços podem ser grilhões, sim, mas também são oportunidades.

Para além de Marx

O socialismo não se pode confundir com sua versão marxista, menos ainda, leninista. Para Marx, o socialismo traria o fim da propriedade privada dos meios de produção, que passariam a pertencer a toda a sociedade. Seus discípulos comunistas esqueceram, porém, o profundo ódio de Marx ao Estado: ele não defendeu o Estado máximo, nem o mínimo, mas o nenhum. Para o marxismo, é fundamental suprimir o Estado. Portanto, os meios de produção não serão estatizados, como ocorreu sob o comunismo. O problema é que ninguém entende como, para Marx, se expressa a sociedade. Propriedade social dos meios de produção, isto é, nem privada nem estatal, tornou-se um enigma, que por isso os marxistas fingem que não existe.

Se levarmos a sério a proposta de supressão do Estado, e lembrar-mos que o leninismo é apenas um dos herdeiros possíveis do projeto socialista concebido no século XIX, então o socialismo tem grande variedade de formas. O que há em comum a elas é a valorização do trabalho, da solidariedade, da igualdade. Durante um certo tempo, o socialismo parecia incompatível com o capitalismo e, por isso, só era possível no parentesco do comunismo. Mas precisamos deixar claro que o comunismo foi reprovado pelo próprio marxismo no quesito supressão do Estado, pois, longe de acabar com ele, o hipertrofiou.

Alguns dizem identificar o socialismo de verdade ao marxismo. Mas provavelmente se referem ao leninismo, que inclui o partido único, a repressão política, o Estado totalitário. Será que as socialdemocracias europeias, que até os anos 1960 citavam Marx como um de seus inspiradores, estão mais longe dele do que o leninismo? Os socialismos europeus são democráticos. Convivem com o capitalismo. Refreiam seus excessos. Hoje, para dizer a verdade, parece difícil imaginar um regime econômico que substitua e supere o capitalismo. Ele pode ser corrigido e melhorado. Mas, em suma, não há razão para achar que Lênin fosse mais fiel a Marx do que o SPD alemão. Talvez, o que tenha ficado do socialismo não seja um sistema econômico, que não sabemos como seria, mas uma inspiração de solidariedade, de igualdade, de fraternidade. Talvez, não haja boa política hoje sem uma dosagem, variável, de socialismo e liberalismo. Puros, não são tão bons, Melhoram com a mistura. Talvez uma boa política, hoje, tenha de ser mestiça."

Renato Janine Pedro Ribeiro

"Em nenhum lugar conseguimos realmente superar o que Thorstein Veblen chamou 'a fase predatória' do desenvolvimento humano. Já que o verdadeiro propósito do socialismo é precisamente superar a fase predatória do desenvolvimento humano e ir além dela, a ciência econômica em seu estado atual pouca luz pode lançar sobre a sociedade socialista do futuro. O socialismo se dirige para um fim socioético. A ciência, contudo, não pode criar fins e, menos ainda, instilá-los nos seres humanos. Quando muito, a ciência pode suprir os meios pelos quais atinge determinados fins."

Albert Einstein, Monthly Review, maior de 1949.